Você está voltando de um passeio com os amigos em um sábado à noite. A rua, uma das mais movimentadas de São Paulo, a Augusta. As calçadas estão repletas de pessoas. Os bares estão cheios. E os restaurantes a todo o vapor. Ao observar um deles com mais calma, percebe que um casal está jantando. Nesse momento, quase como em uma cena dirigida, ambos aproximam os lábios e selam um delicado beijo.
Um quadro assim poderia soar normal. Mas, ao contrário do que parece, foram nessas condições que Gabriel Cruz e Jonathan Favari se tornaram vítimas de uma brutal agressão. Na noite do dia 02 de agosto de 2014, um garçom e um segurança do restaurante japonês Sukiya os abordaram a pancadas após alegarem que ali seria um lugar de família, e que demonstrações de afeto não eram permitidas.
Independente de denúncias e manifestações, situações assim continuam a surgir com mais frequência do que imaginamos. E se na compreensão de alguns um beijo pode ser o estopim para uma atitude de violência, para outros, um simples segurar de mãos é suficiente para uma rebelião. De acordo com um levantamento feito pela TransBrasil e pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), só em 2016, foram contabilizados um total de 144 mortes de LGBTs. E, como se esse dado já não fosse exorbitante, até 20 de setembro de 2017, foram registrados 277 homicídios desse mesmo grupo. Isso representa mais de uma morte por dia e nos classifica como o país que mais mata LGBTs no mundo
Levar essa pauta a manifestações, rodas de debate e salas de aula é um caminho considerável rumo a conscientização. Mas desmerecer a influência da mídia nesse sentido é hipocrisia. Chegamos em um ponto da história em que televisores são eletrodomésticos indispensáveis. E quase como parte do quadro, a vasta programação de telenovelas interage com os diálogos contemporâneos da nação. E para o roteirista Well Bruno, 22 anos, abertamente homossexual, essa é a oportunidade de trazer o debate à tona de maneira educacional e representativa. “Acredito que nossas relações são construídas a partir de projeção e identificação. Sendo assim, dar espaço nas produções para que figuras LGBTs, outrora marginalizados, tenham destaque, enriquece não só artisticamente como também socialmente. Isso cumpre o papel de abrir diálogos a respeito de sexualidade e gênero”.
Apesar do discurso, o roteirista esclarece que a ação precisa ser mais trabalhada que apenas uma inserção na trama. Para ele, “é preciso contextualizá-los, humanizá-los e assim evidenciar os seus conflitos, as suas alegrias e as suas relações”. Ao longo da sua história, a TV brasileira exibiu em alguns enredos cenas que marcaram a inserção do assunto na mídia. Confira a linha cronológica até a chegado ao famigerado beijo que marcou de fato a representação de relações homoafetivas na programação brasileira.
Rodolfo Augusto, Assim na Terra como no Céu (Globo, 1970)
Considerado o primeiro personagem LGBT da TV brasileira, o personagem de interpretado por Ary Fontoura não escondia trejeitos e falas insinuativas. Seu estereótipo foi, inclusive, base para outras representações gays na teledramaturgia.
A relação misteriosa de Conrad Mahler e Cauê, O Rebu (Globo, 1974)
Ainda que a censura, na época, tenha obrigado a contextualizar a relação de ambos como pai e filho, é possível perceber que a relação do milionário Conrad e seu jovem protegido, Cauê, aí além de um carinho fraternal. Até porque, o principal motivo do assassinato de sua esposa foi o ciúme por ele ter se envolvido com seu amado.
O discurso de aceitação de Inácio, Brilhante (Globo, 1981)
Sob a obsessão de sua mãe em vê-lo casado, o personagem de Dennis Carvalho também deixou no ar a sua possível homossexualidade. Tudo se intensificou após o seu polêmico discurso de aceitação, onde para muitos só faltou ser dita a palavra homossexual.
A censura sobre o casal Laís e Cecília, Vale Tudo (Globo, 1988)
Com o fim do regime militar, a proposta era trazer esse e outros temas a tona. No entanto, não foi bem o que aconteceu. O casal Laís e Cecília, além de uma história de amor, tinha a responsabilidade de abordar temas jurídicos envolvendo a comunidade. Como o direito à herança quando um dos integrantes de uma relação homossexual morre. Mas ainda que transparecesse ser uma relação homoafetiva, era vetado que as atrizes demonstrassem intimidade.
A aceitação do primeiro casal gay, A Próxima Vítima (Globo, 1995)
O relacionamento de Jefferson e Sandrinho na novela das 20h foi um dos grandes passos rumo a inserção de casais LGBTs na teledramaturgia. Tratado de forma profunda e sem estereótipos, o envolvimento de ambos foi aceito por grande parte do público, dando a eles grande destaque. Um outro avanço a se considerar é a representatividade imposta ali, já que o casal se tratava de um negro e um branco.
A morte de Rafaela e Leila, Torre de Babel (Globo, 1998)
Se os personagens Jefferson e Sandrinho presenciaram um avanço quanto a representatividade LGBT, as personagens Rafaela e Leila não obtiveram a mesma sorte. Seguindo a mesma linha dos personagens de A Próxima Vítima, ambas foram representadas de forma madura e sólida. No entanto, não receberam a mesma receptividade do público, que as rejeitou e condenou a um fim precipitado na trama. As duas acabaram mortas na explosão do shopping na novela.
A transexual Ramona, As Filhas da Mãe (Globo, 2001)
Apesar do tema já ter sido abordado antes, como na novela O Bofe (1972), essa foi uma das primeiras vezes em que a transexualidade ganha destaque. Interpretada por Claudia Raia, Ramona foi não só trouxe o debate sobre identidade de gênero à tona como também recebeu a aceitação do público.
O beijo não exibido de Júnior e Zeca, América (Globo, 2005)
Esse, certamente, foi um dos momentos mais polêmicos da teledramaturgia brasileira. As relações entre pessoas do mesmo sexo já era recepcionada positivamente pelo público. No entanto, até então, nenhuma demonstração explícita de afeto havia sido exibida. Os rumores de que um beijo havia sido gravado trouxeram a expectativa sobre uma possível cena a ser exibida no final da novela. Mas o que de fato aconteceu foi a desistência por parte da emissora, que não o autorizou de ser exibido.
O primeiro beijo LGBT na televisão aberta, Amor e Revolução (SBT, 2011)
Ainda que a Rede Globo houvesse introduzido em maior número personagens LGBTs em suas tramas, a atitude de exibir um beijo LGBT sem censuras e no contexto afetivo partiu do SBT. O ato aconteceu junto a uma declaração de amor da advogada Marcela à sua amiga, a jornalista Marina.
O beijo de Félix e Niko, Amor à Vida (Globo, 2013)
A atitude da Rede Globo em exibir o seu primeiro beijo LGBT só surgiu dois anos após a exibição do SBT. A trama do personagem Félix foi a escolhida para trabalhar o avanço. Casado, com um filho e financeiramente estável, ele transparecia uma vida invejável. Mas foi a partir desse cenário que o enredo quebrou o personagem ao revelar a batalha interna que o personagem vivia. Com uma abordagem madura, sensível e tocante, a emissora concedeu o final que o antagonista merecia. Com um beijo selado com o seu novo amor, Niko, e com a oportunidade de reconquistar o amor do pai, que nunca aceitou sua orientação sexual.
A primeira cena de sexo gay, Liberdade, Liberdade (Globo, 2016)
Ainda que cenas assim, envolvendo um casal hétero, fossem exibidas e aceitas tranquilamente pelo público, as imagens dos personagens André e Tolentino dormindo juntos pela primeira vez foi suficiente para gerar celebração e ódio dos telespectadores brasileiros. Delicadamente dirigida, a cena mostrava a tensão de um casal alimentado por desejo e medo. Medo desse próprio desejo.