Bixa preta: cineastas discutem a representação negra no cinema LGBT - Frames
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Bixa preta: cineastas discutem a representação negra no cinema LGBT

Todos os anos, Elio passa suas férias de verão em uma casa na costa italiana. Naquele ano, como era de se esperar, tudo parecia normal. Os banhos de piscina continuavam refrescantes, o sol ainda queimava o corpo molhado e as inspirações para poemas continuavam a surgir esporadicamente. Tudo, de fato, parecia normal. Até o momento em que um desconhecido se hospeda na casa e desperta em si uma nova sensação.

Adaptado de um livro para as telas, o filme do diretor italiano Luca Guadagnino é um exemplo mais que atual de abordagem LGTB no cinema hollywoodiano. Tema em rodas de debate e destaque em páginas de revistas, o longa-metragem pode facilmente ser descrito como popular. Afinal, em 2017, sua bilheteria foi uma das maiores no cinema americano, e, até o momento, pode ser definido como favorito entre as categorias em que concorre ao Oscar.

No entanto, ainda que haja essa notoriedade, a aclamação da crítica não parece ser unânime. Enquanto para uns o trabalho é digno de aplausos, para outros ele não é tão brilhante assim. Pelo olhar do cineasta Valter Rege, presente na indústria cinematográfica há mais de 20 anos, o trabalho apenas apresenta, mais uma vez, um estereotipo sexual reproduzido há anos. “Mais uma vez vemos o retrato de homossexuais como brancos, e histórias sendo contadas de uma forma romantizada. Por uma questão pessoal eu optei por não assistir esse filme. Já faz um tempo que estou usando o meu tempo para assistir produções que contemplem mais o negro”.

Ainda que pessoal, a sua fala reflete uma realidade incontestável na indústria cinematográfica. De acordo com uma pesquisa realizada pela GLAAD (Gay & Lesbian Alliance Against Defamation) em 2016, dentre os 23 personagens LGBTs presentes em produções cinematográficas, apenas 20% são de etnias não-brancas. Pela mesma pesquisa ainda é possível confirmar que, dentre os 23, mais da metade permanece menos de um minuto na tela. Com dados como esse, é compreensível que o termo representatividade se torne discutível.

A jornada pela inserção de personagens que representem a realidade das relações homoafetivas começou anos atrás. Mais precisamente, em 1927. Foi pelas mãos dos roteiristas Louis D. Lighton e Hope Loring que nasceu o roteiro de um épico drama de guerra. A história de dois soldados americanos em busca do amor de uma mesma mulher propunha emocionar jovens da década 1920. Durante a exibição de seus minutos finais, os espectadores do longa-metragem “Asas” assistiram pela primeira vez uma singela ação: um homem beijar outro nos lábios.

Ainda que o contexto o colocasse como um beijo fraternal de despedida, o encostar de lábios foi suficiente para chocar a população, que, ainda que soubesse da existência de comportamentos homossexuais, os confrontava com piadas e discursos sobre aberração. Como ação preventiva para silenciar a pauta, criou-se o Código Hays: um conjunto de regras que vedava cenas de uso de drogas, suicídio, sexo e homossexualidade.

Nas produções seguintes, a abordagem do assunto se limitou a “tendências homossexuais” e a nuances afeminadas, destinadas a personagens caricatos vistos até hoje em comédias pastelão. De fato os anos seguintes trouxeram mais produções capazes de abordar o tema. Filmes como “Gaiola das Loucas” (1996) e “Priscilla – a rainha do deserto” (1994) surpreenderam ao atrair centenas de telespectadores aos cinemas. Mas, por maior que fosse o número de personagens LGBTs, as caracterizações ainda eram as mesmas dos anos de censura. E, como se não bastasse, as representações se limitavam a personagens que correspondiam ao padrão de uma classe dominante na época.

“O público que consome cinema, em sua maioria, é branco. O modelo de beleza tanto na comunidade LGBT, como na hétero, é eurocêntrico. Então, não há escapatória para a indústria comercial. Tudo se resume ao estereótipo criado em relação ao negro no cinema”, explica o diretor Valter Rege.

É necessário compreender que, mesmo com o avanço em abordagens sobre o assunto, ainda há muito a debater sobre a forma como a pauta é levantada. Para aprofundar essa análise, convidamos alguns diretores, produtores e atores negros para entender qual a sua visão sobre representatividade LGBT no cinema.

Nome: Rogério Henrique Gonçalves

Idade: 30 anos

Profissão: Roteirista e diretor

Frames: Qual a sua concepção a respeito do filme “Me Chame Pelo Seu Nome”?

Rogério: É um filme com uma clara intenção de valorizar as nuances de possibilidades psicológicas e existenciais em relacionamentos homossexuais. É bonito. Dá pra ver um cuidado em se afastar dos clichês e em conferir identidade às situações.

Frames: Mas na sua opinião, por que a questão racial vem sido discutida desde o lançamento do filme?

Rogério: Há vários motivos para isso acontecer. Mesmo com os anos, o cinema se mantém conservador do ponto de vista político. Isso se dá por estar nas mãos de uma classe dominante. Quanto mais se aproxima do topo da pirâmide, menos pretos há. Só de olhar esse quadro dá pra entender porque o preto se torna exceção no âmbito da representatividade. É nítido que sempre haverá um caminho incrivelmente mais longo para os pretos nas produções cinematográficas LGBTs.

Frames: A comunidade LGBT é retratada corretamente no cinema comercial?

Rogério: Se pensarmos em uma indústria de massa, certamente encontraremos personagens gays necessariamente afeminados ou estereotipados pela sexualidade, como se representassem uma perversão. Esses engodos são evitados apenas olhando a forma como foram criados. Em grande parte dos casos, não há um cineasta gay envolvido no trabalho. Tudo surge de um imaginário hétero. Então é bem compreensível de onde vem a falha.

 

Nome: Álife Silva

Idade: 21 anos

Profissão: Diretor de Arte

Frames: Qual a importância da representatividade LGBT no cinema?

Álife: Representatividade sempre foi e sempre vai ser importante, mesmo que hoje seja velada. Digo isso porque não se consegue representar a comunidade de uma forma abrangente. Sempre vai rolar exclusão de uma parte.

Frames: Por que diz isso?

Álife: Todos falam sempre do mesmo tema. Acho que se torna quase nula a valorização quando tratam temas pela comoção. “Ai, ele falou de um tema LGBT”. As pessoas não falam porque se deve falar. Elas falam pra ganhar dinheiro e visibilidade. Visibilidade pra elas, e não pra causa!

Chega a ser bonito, agradável, aos olhos de um produtor/diretor de cinema tratar esses temas.

Frames: Como você enxerga a representação racial no audiovisual?

Álife: Com certeza há uma valorização maior do branco. Na maioria dos filmes em que a temática LGBT é abordada, quando se retrata um negro é sempre de uma forma pejorativa. Como se ele devesse sofrer. Mas quando se coloca a história na pele do branco, tudo muda. Todos ficam “nossa, olha como ele é um coitado”. É quase como se fosse mais fácil sentir dó de uma pessoa branca, do que de uma pessoa negra. É aquela ideia, né? O negro nasceu pra sofrer.

Frames: É mais fácil para a sociedade aceitar uma pessoa homossexual branca?

Álife: É muito mais aceitável, e muito mais bonito, ver um casal de brancos que um casal de negros. As pessoas sempre veem isso.

A pele negra vem com uma carga muito pesada na sociedade que a gente vive hoje. Se homens brancos homossexuais tem que enfrentar 100 barreiras a mais que homens brancos heterossexuais, um jovem negro LGBT tem que enfrentar 500 barreiras a mais, porque tudo vem acoplado ao racismo. O corpo negro é objetificado demais. As pessoas ainda o enxergam como uma carne pra simples uso. Sem moderação e respeito.

Frames: Você acha que a comunidade LGBT é retratada corretamente no cinema comercial?

Álife: Não, não consigo considerar a comunidade LGBT bem representada. Nós sempre somos representados por doenças. LGBTs ainda são tratados como patologia.

O universo trans ainda é tratado de uma forma muito simplória, sem conteúdo. Garota Dinamarquesa é um grande exemplo disso! Eu acho que se sabe muito pouco. As pessoas não fazem um trabalho efetivo. São poucos os filmes que a comunidade é bem representada. Pouquíssimos. Porque é comercial, né? Não vou vender nada que o publico não queira ver. Tudo é floreado demais. Sempre dando visibilidade pra um e não para o outro.

Nome: Larissa Lima

Idade: 20 anos

Profissão: Cineasta

Frames: Você assistiu ao filme “Me Chame Pelo Seu Nome”?

Larissa: Apesar de ter lido críticas positivas sobre, não o assisti. Não foi um filme que me despertou interesse. Ao contrário de Moonlight que, por exemplo, foi um filme extremamente inovador e importante, por procurar representar e discutir a intersecção entre negritude e ser LGBT.

Frames: O personagem branco é mais valorizado nas obras cinematográficas LGBTs?

Larissa: A representação LGBT aumentou de maneira significativa nos últimos anos. Mas a maior parte dessa representação tem algo em comum: é realizada e representada por pessoas brancas. Em especial homens brancos. Li recentemente que, dos filmes LGBTs realizados em 2017, 77% eram focados em pessoas brancas. É como assistir a mesma história ser contada milhares de vezes.

Frames: Existe uma romantização nos filmes com protagonistas brancos?

Larissa: Certamente. Muitos filmes LGBTs lançados comercialmente possuem a típica trope onde o protagonista morre ou fica infeliz. É como se a vida de pessoas LGBTs se resumisse a tragédia. Em filmes com mulheres homossexuais, em particular, é muito comum que as personagens morram (dead lesbian trope) ou que, subitamente, passem a se relacionar com homens, como uma espécie de cura gay cinematográfica.

Frames: Como você observa a abordagem das tramas lésbicas no cinema/televisão? Elas são retratadas da forma correta?

Larissa: Pra começar, mulheres lésbicas são bem menos representadas. A representação LGBT ainda é amplamente focada em homens brancos. Além disso, quando somos representadas, as personagens são extremamente sexualizadas, reforçando a ideia de que a sexualidade da mulher lésbica é fetiche, categoria de pornografia. Isso acontece porque muitos filmes lésbicos são feitos por homens, que não conseguem representar mulheres lésbicas de maneira digna e humana. Quando um filme é realizado por um homem, mas possui mulheres lésbicas na produção, a diferença é clara. Isso aconteceu no filme Carol, que possui um homem na direção e uma mulher lésbica no roteiro; o filme consegue representar mulheres lésbicas de maneira sensível e cuidadosa. A maior parte da representação lésbica no audiovisual também é realizada e representada por pessoas brancas. Há muitas barreiras a serem ultrapassadas para que mulheres lésbicas sejam representadas de maneira digna.

Frames: Tem algum filme com protagonistas lésbicas que, de alguma forma, te representa?

Larissa: Sim. É um dos poucos que conheço onde mulheres negras lésbicas são representadas muito bem. Ele se chama “Pariah”. Possui direção e roteiro da Dee Rees, uma mulher negra e lésbica que está indicada ao Oscar 2018 por “Mudbound”.

Nome: Well Bruno

Idade: 22 anos

Profissão: Roteirista

Frames: Qual a importância da representatividade LGBT no cinema?

Well: Acredito que nossas relações são construídas a partir de projeção e identificação. Sendo assim, dar espaço nas produções para que figuras LGBTs, outrora marginalizados, tenham destaque, enriquece não só artisticamente como também socialmente. Isso cumpre o papel de abrir diálogos a respeito de sexualidade e gênero.

No entanto, ainda penso que não é suficiente apenas representá-los. É preciso contextualizá-los, humanizá-los e assim evidenciar os seus conflitos, as suas alegrias e as suas relações.

Frames: É mais fácil para a sociedade aceitar uma pessoa homossexual branca?

Well: É mais fácil a sociedade aceitar uma pessoa branca, “ponto”. O homossexual negro é um dos desdobramentos do preconceito. É como se fosse uma somatória.

Frames: O negro/negra é excluído dentro da comunidade LGBT?

Well: Infelizmente o movimento ainda é muito concentrado na representação gay, branco, cisgénero. Reflexo disso é a realidade de que o movimento que melhor ampara a pauta lésbica é o feminista.

Frames: A comunidade LGBT é retratada corretamente no cinema comercial?

Well: Seria muito pretensioso da minha parte dizer como deveria ser representado. Mesmo sendo eu parte dessa comunidade. Eu simplesmente gostaria que fosse abordada de forma mais plural, com o mesmo espaço para todas as letras da sigla. Que levasse em consideração o lugar de habitação. Afinal, ainda com todas as problemáticas, é mais fácil ser gay na paulista do que na favela.

Nome: Valtinho Rege

Idade: 34

Profissão: Cineasta

Frames: Qual a importância da representatividade no cinema?

Valtinho: Eu acho que o cinema é uma representatividade muito grande pros jovens, principalmente pro negro periférico. A gente vive num país onde ele absorve o que vem da televisão e do cinema, então não tem uma educação que o ensine a analisar. Ele simplesmente absorve e acaba achando que aquele é um padrão ideal.

Um exemplo nítido está na maioria dos filmes que retratam homossexuais brancos. As histórias são contadas de uma forma romantizada, sempre bonitinhas. Mas quando há um personagem negro a trama sempre fica diferente. Mais pesada.

Frames: Por que nessas tramas há um contexto mais pesado?

Valtinho: Tudo se resume ao estereótipo criado em relação ao negro no cinema. O público não compra outra narrativa porque simplesmente foi imposto que não é verossímil existir um negro que não tenha a marginalidade em seu DNA. Por isso gosto tanto de Moonlight. Apesar de tratar dos temas que citei, o filme humanizou o personagem. Isso foi importante para trazer identificação e sair do previsível.

Frames: Qual a sua concepção a respeito do filme “Me Chame Pelo Seu Nome”?

Valtinho: Eu quero deixar muito claro que não há problema em produzir filmes LGBTs com diferentes tipos de pessoas. Mas a realidade é que existe um déficit de representatividade muito alarmante nesse segmento que, infelizmente, exclui mesmo. Isso tanto no audiovisual, como na vida real. Por uma questão muito pessoal eu optei por não assistir esse filme. Já faz um tempo que estou usando o meu tempo para assistir produções que contemplem mais o negro.

Foi feita uma pesquisa pela UFRJ, Universidade Federal do Rio de Janeiro, que, nas produções feitas de 2002 até 2013, só 2% de negros dirigiram ou produziram filmes no Brasil. Eu imagino que, realmente, não haja nessa porcentagem tantos filmes com temática LGBT para pessoas pretas.

Reportagem: Diogo Domingos.
Ilustração: Nathalia Silveira.

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