Há mais de cem anos, entre fumaças de cigarros, doses de gim e incontáveis horas gastas ao redor de mesas, fosse nos fundos de algum escritório apertado ou numa casa barateada em Bronxville, o escopo do que futuramente seria a indústria do Teatro Musical Americano emergia rapidamente por mentes que sequer imaginavam que teriam seus nomes eternizados por cada botão apertado nessa grande máquina. Enquanto Kern e Bolton juntavam esforços para encher um teatro de duzentos lugares nos idos anos de 1915 com o protótipo melhor assimilado do que seria um musical; hoje, porém, só o ramo de teatro musical leva milhares de pessoas a Broadway, gerando uma receita de bilhões de dólares para a economia do país.
E em Nova York mesmo, o pináculo do sucesso teatral, o império da moda se desenvolve sólida e paralelamente na famosa Quinta Avenida, fazendo dela uma de suas capitais fashionistas. Ao longo de nossa História, a moda, como uma das principais vias de comunicação e identificação do homem, ganhou diversos aspectos e serviu, desde os primórdios, para discernir povos, culturas, estabelecer níveis entre classes sociais, influenciar e se tornar parâmetros de leis. A moda identifica, cataloga, explica e traça perfis. E ainda que possa não parecer, a moda e o teatro não são estranhos um para o outro.
Século após século, a importância e papel dos figurinos dentro das peças teatrais apenas cresceu e evoluiu, adquirindo uma função fundamental, porém com objetivos diferentes. Na era Elizabetana, por exemplo, mais conhecida no teatro como a era de Shakespeare, por volta de 1595, num dos períodos mais artísticos da história, tudo se resumia a cores e tipos de tecidos, devido ao rigor das Leis Suntuárias que proibiam qualquer pessoa de vestir uma roupa que não condissesse com sua atual classe social; valendo tanto para os servos quanto para os altos cargos e a nobreza.
Com o pouco tempo que as companhias teatrais possuíam de produção e recursos, os figurinos eram as vestes da própria Era Elisabetana, e tinham a única função de transmitir a posição social de seus personagens, desprezando o período em que a história se passava e até mesmo a nacionalidade, exceto quando a história tinha lugar na Grécia ou Egito Antigo que eles optavam por colocar togas, que eram fáceis e rápidas de serem confeccionadas, por cima de suas roupas comuns. As cores, assessórios e materiais que as vestes carregavam formavam uma síntese de informações no corpo do ator, e a plateia já conseguia descobrir se o personagem era um príncipe, nobre ou grande possessor de terras no momento em que ele entrava em cena. O veludo, a seda, as peles e o cetim, nas cores dourado, índigo, vermelho e cinza representavam claramente alguém da nobreza ou de outras classes altas. Já o tafetá, algodão, linho, pele de ovelha e a lã nas cores laranja, russet, verde e azul claro denominavam um nível bem mais baixo. O bege normalmente predominava nas roupas dos servos.
Num período em que o visual era altamente valorizado e um elemento social de empoderamento, o teatro não possuía voz, tampouco perfil. Não havia visão nem conceito por detrás dos figurinos que refletiam a realidade da época e eram apenas um objeto de luxo que servia para suster um sistema de leis escravizantes. A atitude da grande atriz francesa Adrienne Lecouvreur de usar pela primeira vez um vestido que retratasse as características de sua personagem e não o período em questão, foi essencial para que a concepção de um figurino começasse a ganhar reconhecimento e importância de um modo artístico dentro de uma peça teatral depois de cerca de 137 anos de estagnação. A partir de 1750 que os figurinos foram adquirindo definitivamente uma identidade de conceito, servindo para transmitir ao público por meio do design da roupa todas as características mais aparentes da personagem, como o seu traço de caráter, e também os subtons intrínsecos que se revelariam durante a trama. As roupas começaram a serem produzidas a partir do nada, tendo como base as obrigações descritas no perfil dos personagens, com o único dever de criar um diálogo visual coerente e informativo nas mais variadas angulações da história, tornando-se o melhor exemplo de “mise en scène”.
E foi no século XIX que o teatro musical americano deu seus primeiros respiros, trazendo novas ideias e influências que iniciaram um processo definitivo de expansão da moda dentro do teatro. Assim como esta foi construída a partir do desenvolvimento e análises de tendências e ações passadas, os musicais percorreram um caminho parecido até se tornaram o que são atualmente. A era do Princess Theatre em 1915 foi responsável pelos primeiros passos em direção ao estilo musical de teatro, dando origem ao espetáculo “Nobody Home”, de Jerome Kern e Guy Bolton, adaptado de uma peça londrina, e que teve como base “The Black Crook” (1866) e “Little Johnny Jones” (1904), que foram as primeiras fórmulas de musicais que apresentavam algumas poucas noções do que futuramente poderia ser o teatro musical.
Com o declínio do período do Princess Theatre, 1927 foi o ano em que foi apresentado a Broadway a maneira até então mais completa e similar aos musicais que hoje são consumidos, apreciados e conhecidos pelo mundo todo. A tarefa complexa de criar músicas que externassem os sentimentos dos personagens e servissem para contar e também evoluir sua linha de enredo dentro da história de forma coesa e articulada, foi alcançada com o musical “Show Boat”, uma colaboração entre Jerome Kern e Oscar Hammerstein II, adaptado do romance homônimo de Edna Ferber, que, além das próprias inovações que trouxe para a cena do teatro musical, como a ascensão do estilo Book Musical, concentrava com um pouco mais de harmonia, embora ainda com vários defeitos, as diversas interferências do Vaudeville, das Operettas, dos musicais Eduardianos de Gilbert e Sullivan, os revues do grande empresário Ziegfeld, as Óperas do Savoy e o Princess Theatre em si.
A narrativa que abordava a vida, questões trágicas e melodramas de amor, sob um enredo de grande tensão racial, dos artistas e trabalhadores do Cottom Blossom, encenada em “Show Boat”, representou não só um avanço mais do que significativo na concepção americana moderna de musical, como também teve grande impacto na história do teatro, dos Estados Unidos e na moda atual. A produção foi a primeira da história a reunir brancos e negros no mesmo palco, quebrando alguns paradigmas, desestimulando uma cultura artística de zombaria e preconceito às custas dos negros, e incentivando, ainda que de maneira ingênua, a igualização teatral.
O século XIX foi uma fase de grandes transformações na moda moderna, principalmente por marcar a quebra da ditadura da igualdade estética e padronização do masculino e feminino. Enquanto na Era Elisabetana as mulheres eram proibidas de fazer teatro e se vestir, assim como todo mundo, da maneira que gostaria, o ano de 1920 trouxe a revolução da Art Déco para os palcos e vestiu as mulheres como uma peça artística pelo abstrato, ganhando um destaque especial nos shows de “Follies”, de Ziegfeld. E o trabalho mais meticuloso que foi “Show Boat” permitiu que uma nova linguagem dos figurinos começasse a desenvolver seu papel dentro do teatro musical. Os figurinos adquiriram um aspecto complementar na música, concedendo um apoio emocional que também precisava espelhar e exteriorizar visualmente no corpo do ator toda a trilha sonora do espetáculo.
A moda dentro do teatro musical americano foi, afinal, um processo contínuo de redescobertas e assentamento de perspectivas que se deu no decorrer dos anos, conforme as ideias e visões dos espetáculos foram se modificando e ampliando com a origem essencial de movimentos estilísticos musicais, abrindo espaço na arte de entreter da maneira que caminha a humanidade: lado a lado.