Laurindo Feliciano é um artista brasileiro e vive na França há 16 anos. Seu trabalho, que tem como principal tema o resgate da memória, mescla elementos digitais e analógicos, tanto para ilustração quanto para colagem.
A entrevista foi feita por Skype.
Você já disse em entrevista que tem uma imagem pronta na cabeça quando começa a criar. O quanto essa imagem muda no processo?
Eu nunca estudei em escola de arte. Minha formação é design de produto, inicialmente, e depois arquitetura. Trabalhei nessas áreas pelo menos uns 10 anos antes de me tornar ilustrador, em Paris. Eu estou na França há quase 16 anos. Querendo ou não, o que me ajudou, quando passei por essas áreas, é que meu trabalho consiste em dar uma resposta a problemas e questionamentos.
Por isso, mesmo quando vou fazer um trabalho pessoal, de artista, não vou olhar para o papel em branco e construir algo a partir do nada. Eu vou sempre me basear em alguma coisa. Um texto, algum disco que eu tenha ouvido muito ou, na maioria dos casos, que é uma reconstrução de memória, tanto pessoal, quanto coletiva.
Ou seja, às vezes estou num bar, tomando café e vou ouvir duas pessoas conversando, pescar aquela conversa e transformar em algum trabalho.
Essa história da falta de criatividade, para mim, eu costumo dizer para artistas que falam isso: ‘Você precisa olhar o que está acontecendo à sua volta’. Não é possível não ter inspiração. Tem muita coisa acontecendo em volta de você. Não é possível ficar com o problema de folha em branco.
O meu trabalho começou muito com um trabalho de colagem e, com o passar do tempo, alguns clientes começaram a pedir coisas muito específicas ou elementos muito específicos. E eu adoro desenhar, sempre desenhei bem desde criança, e sempre gostei da estética da colagem. Então, hoje hoje em dia quando você pega um trabalho meu, principalmente de 2016 para cá, posso dizer que 60%, 70% são colagens de pinturas minhas ou desenhos meus.
Posso dizer que as ideias, os elementos básicos da composição existem na minha cabeça. A base, a força da ideia, o gesto, algo que está como elemento principal já existe, mas me dou a liberdade de, no momento da construção do trabalho artístico, acrescentar um elemento ou outro que vão trazer uma surpresa ou guiar o olhar.
Nesse caso, trabalhar com colagem analógica é praticamente impossível?
Não, a colagem analógica acaba sendo facilitadora porque pintar no digital leva muito mais tempo do que fazer a colagem em si mesmo, mas ultimamente tenho preferido pintar porque acabo criando um conteúdo muito mais original.
Não me considero colagista, me considero um artista e ilustrador que usa a colagem como médio, como meio de expressão e, de um tempo para cá, desde 2013, 2014, tento fazer com que cada elemento que encaixo ali, sendo pintura minha ou colagem, seja homogêneo, que as pessoas olhem o trabalho final e perguntem como eu fiz isso.
Uma percepção minha, e acho que de todo mundo que trabalha com colagem, é que geralmente você usa revistas antigas ou contemporâneas, acaba que chega uma hora que todos os trabalhos se parecem. O trabalho de colagem acaba não tendo alma pelo fato de todo mundo usar os mesmos elementos para criar as composições.
Todos os críticos de plantão do Photoshop, que dizem que são puritanos da colagem, que só usam o analógico, acho hipócrita. Se os surrealistas tivessem Photoshop, com certeza usariam. Eles eram ávidos de novas tecnologias, usaram vídeo, foto, tudo que eles tinham em mãos para poder criar.
Como é o processo da colagem e da ilustração? Como é trabalhar colando trabalhos que também são seus?
Ano passado, por exemplo, fiz um trabalho para um pub da Inglaterra, chamado Angel & Greyhound. Eles queriam que eu fizesse um galgo numa posição em que o corpo e a pata formassem uma letra “A”. Ou seja, fazer uma colagem disso é praticamente impossível. O artista vai passar muito mais tempo procurando aquele elemento do que se ele pegar e pintar aquilo. Para mim é muito mais fácil achar uma imagem tosca na internet, fazer uma montagem, usar aquilo como base e pintar.
Tanto que os ilustradores dos anos 50, 60, tinham banco de imagens que eles usavam. Fazia montagens, iam para a mesa de luz e pintavam a partir daquilo. Então eu trabalho como ilustrador à moda antiga, mas usando Photoshop, pincéis.
E a minha pintura digital tem uma particularidade, já que eu nunca aprendi, nunca tive aula. Eu domino porque fui mexendo e achando meios de conseguir trabalhar nele.
Sobre transpor limites eu conversei também com o artista Max O Matic, para a série, e falamos sobre o Oulipo, grupo francês que impõe limites criativos para a literatura. Como é para você trabalhar com determinadas limitações?
Eu não me imponho regras, geralmente, eu me dou liberdade, mas eu já fiz alguns estudos de cores, por exemplo, tem um trabalho que a Associação dos Ilustradores do Reino Unido usou para promover o London Ilustration Awards, que é o prêmios deles. Fizeram 150 mil em formato A5 e distribuíram pelo mundo.
Esse é um trabalho que fiz um estudo de cores, foi uma colagem digital onde tentei achar equilíbrios entre o bege o dourado. O trabalho, em português, se chama Receita N.1 e era quase uma receita mesmo para estudar os limites das nuances de uma cor só.
Quando faço trabalhos de colagem em tela, que são os trabalhos pessoais mais recentes que eu fiz, a regra que me imponho é de tentar achar uma mistura real entre colagem, pintura e rabisco/desenho. Eu sou incapaz de fazer um trabalho pessoal que não seja metade um, metade outro. Eu simplesmente não consigo fazer um trabalho só de colagem, eu preciso do lápis.
Por que a mudança para a França? Isso influenciou seu trabalho?
O lugar me inspira, mas nunca tive aquele deslumbre que muita gente tem pela Europa. Aqui eu me construí, me tornei adulto, mas não é assim também, que todo mundo respira cultura, todo mundo é culto.
Tenho amigos muito interessantes, mas no Brasil também tem, depende muito de quem a gente frequenta. Quando a gente quer ter em torno de si pessoas interessantes, você vai achar.
É bem legal, eu adoro aqui, aprendi francês muito rápido, não tenho nenhum sotaque e as pessoas me aceitaram, me adotaram. Sinto falta do Brasil e tem essa porra desse inverno que é longo pra caralho e enche o saco.
Claro que é um lugar com muita arquitetura, museu, cultura, mas a gente se pergunta: como é que eu vou? Eu conheço mais museus em São Paulo do que gente que mora lá. A gente tem essa relação preguiçosa com a cidade.
Os franceses, de uma maneira geral, não se dão conta da riqueza cultural que é a França e acabam não aproveitando disso da melhor maneira possível. É um sentimento que eu tenho.
Tem alguma expectativa diferente dos seus clientes pelo fato de você ser brasileiro?
Existem algumas regras para mim, para o meu trabalho como ilustrador. Primeiro você precisa ter fãs, mas não no sentido de fã-clube, mas as pessoas realmente têm que admirar o que você faz. Seja seus amigos, as pessoas próximas de você, seus clientes, principalmente. Então, quando o cliente vê seu portfólio, ele vê e gosta daquele universo. Ele espera exatamente aquilo e também quer ser surpreendido. Isso, para mim, é muito excitante. Eu tenho uma facilidade de conversar e discutir sobre os projetos. Eu estudei muito semiótica para trabalhar essa questão da simbologia, do signo, de símbolo. Querendo ou não, se um cliente já vem com uma ideia muito formatada, vou sempre questionar do porquê ele quer exatamente aquilo e não uma outra coisa.
Eu vou sempre vir com esse questionamento. Mas, por mais que eu seja o ilustrador, eu não tenho esse orgulho do artista de que o trabalho é meu e ninguém encosta. Se é um trabalho de ilustração, de arte aplicada, é um trabalho de equipe.
Por isso acho que o trabalho do ilustrador é pensar. Mais pensar do que uma execução estética, simplesmente. O vincular ideias por meio da ilustração é muito mais importante do que saber desenhar bem. Quando alguém me diz que tem um sobrinho que sabe desenhar e pede um conselho, eu digo: ‘manda esse cara ler’. Porque se ele não ler, se ele não tiver cultura geral, se ele não se interessar pelas coisas do mundo, ele vai se afogar desenhando bem. Ele pode ser o melhor desenhista, se as ideias não surgirem junto, não vai adiantar, ele não vai ser um ilustrador.
Quando o cliente vem até mim, ele se interessa pelo universo, por esse lado misterioso, absurdo.
Percebo que meu trabalho é considerado surrealista e, na verdade, sou muito mais próximo do realismo fantástico latino-americano, que é uma coisa muito mais espiritual e menos psíquica que o surrealismo. Gabriel García Marquez uma influência muito maior sobre mim que o Breton, por exemplo, ou pelo psiquismo dos surrealistas. Claro que admiro muito. Eu li tudo. Li o Manifesto, mas a literatura latino-americana me pega muito mais pelo pé e me considero um dos herdeiros disso, desse legado. Dá pra ver isso no meu trabalho, muito claramente, mas as pessoas estão muito limitadas a pensar que é surrealismo. O que não é real é surreal. Em vez de ser Freud, eu sou Jung. Eu beiro a loucura em alguns momentos e eu dou vazão a isso, porque o trabalho do artista é esse, canalizar vários sentimentos naquilo ali.
No começo da entrevista falamos sobre construção da memória, um tema que esteve presente também na conversa com outros artistas. Pode falar mais sobre isso?
Eu tenho o meu artist statement que escrevo desde 2012 e que está evoluindo porque tem algumas coisas acontecendo que eu preciso relatar ali. O miolo do meu trabalho é essa questão de tentar organizar essa massa de memórias, tanto individual quanto coletiva. Eu, de um ponto de vista pessoal, perdi meus pais muito novo, no final da adolescência e a maioria das pessoas ainda tem esse vínculo da parentalidade, e muitas delas ainda têm as casas que nasceram e cresceram ou que sejam lugares caros às suas infâncias. Eu não tenho mais esses lugares. Eu tenho a minha memória e meu trabalho que me ajuda a reconstruir isso.
Essas perdas me fortificaram e meu trabalho está ligado a esse resgate também. Me sensibilizo muito com pessoas que perderam tudo, que não têm mais esse vínculo porque me solidarizo com esse aspecto da personalidade delas de tentar resgatar e encontrar coisas.
Então o tema que costura o seu trabalho é a memória?
Sim, seria a reconstrução de memória. Tanto é que a minha base de pesquisa são de centenas de livros e revistas antigas que coleciono há 15 anos estão relacionados a isso também. Eu utilizo o detrito, do que sobrou e que está ali no passado sem ninguém olhar mais para aquilo. É um resgate. Meu trabalho, desde o ponto de vista estético, ou temático, intelectual, está ligado a esse resgate da memória, das coisas perdidas, dos elementos esquecidos.
Três obras comentadas pelo artista:
VAMOS
Vamos é um trabalho pessoal. É um autorretrato e ela foi inspirada no 1Q84, do Haruki Murakami, que é meu livro favorito, o livro mais absurdo dele. É muito interessante. Esse trabalho está intimamente ligado à memoria, do que ficou para trás, de ir para frente. Aí entram questões pessoais, mas posso tentar explicar esse trabalho em como a gente fica preso em coisas que aconteceram em nossa vida e o fato de ficar preso nessas coisas impede que a gente avance, vá para frente.
Essa pessoa está em processo, por isso essa linha vermelha, que está seguindo. A pessoa está indo para frente e chamando “Vamos”, então tem essa questão do passado, de impedir a gente de avançar por medo, por vários motivos e isso nos impede de seguir nossa jornada.
Essa nuvem no alto é uma nuvem carregada, mas o céu escorre e a nuvem, não. A nuvem simboliza o passado que não se move mais, é algo que ficou ali.
SHE’S UNIVERSAL
Esse trabalho foi uma encomenda de uma mulher que queria dar um trabalho para o marido dela. Ela não sabia muito bem o que queria e me contou um pouco da história dela, dizendo que a origem dele é judia, que sofreram com o holocausto. Ela foi me contando, que a avó [dele] morreu e que a família se construiu com essa memória da guerra.
Disse que a avó era uma pessoa simples, dona da casa, que cuidava muito do jardim dela. E aí eu tentei criar algo ligado a isso.
Usei colagem, pintei algumas coisas no digital, imprimi grande e fiz um trabalho final de colagem, desenho e colagem de pinturas minhas digitais.
Isso é uma foto da tela gigante.
NO GOOD
Esse está ligado ao equilíbrio, ao tentar encontrar. Aí entram questões pessoais também. Ao mesmo tempo, o fato de ela fazer um cavalo de pau em cima dessa corda mostra que, ao mesmo que tem que ter equilíbrio, tem que ter risco. O risco existe no equilíbrio.